
Aparecem no outono, com as primeiras chuvas e o frio, e fazem as delícias de apreciadores e ‘gourmets’. Falamos de cogumelos, os habitantes do “quarto reino”
Sem cogumelos não há floresta. Estes fungos desempenham um papel essencial no ciclo biológico do planeta. Eles ajudam a fertilizar os solos, decompondo os organismos vegetais e animais, o que permite que a terra esteja sempre limpa e nutrida. Pertencentes ao chamado “quarto reino”, o dos fungos (depois do reino animal, vegetal e mineral), os cogumelos são de uma variedade imensa — há 80 mil espécies conhecidas e um milhão e meio desconhecidas, o que todos os anos é causa de alguns sustos, alguns graves. Em Portugal, só na serra da Gardunha existem “mais de 400 espécies de cogumelos silvestres”, explica José Matos, um ex-comissário de bordo da TAP que se instalou na aldeia de Alcaide, perto do Fundão, há cerca de 13 anos. Quando chegou, nada sabia sobre cogumelos. Mas o facto de ter comprado uma quinta centenária com 20 hectares, onde estes fungos proliferaram livremente durante décadas, deu-lhe vontade de saber mais sobre este mundo. “Até anteontem, tinha na minha quinta 152 espécies diferentes de cogumelos silvestres, mas ontem apareceram-me mais duas, que nunca tinha visto em 13 anos que vivo aqui”, conta.
José Matos lidera um passeio micológico, em Alcaide, no Fundão. Em baixo, “Gelado de boletus com brownie”, e “Magret fumado com gratin de batata e cantharellus”, servidos no restaurante Santa Clara dos Cogumelos, em Lisboa
Hoje, José é um profundo conhecedor do reino dos cogumelos, e transmite o seu saber sempre que pode. No Festival Míscaros, que toma conta da aldeia de Alcaide, no Fundão, há já oito anos consecutivos, organiza passeios micológicos pela floresta, onde explica quais os cogumelos comestíveis e quais os tóxicos. Uma das suas regras de ouro no que toca a cogumelos silvestres é “nunca arriscar”. Aliás, “a principal preocupação do festival é garantir a segurança das pessoas”, assegura. Todos os cogumelos servidos no fim de semana passado (de 18 a 20 de novembro) em dezenas de casas de Alcaide eram verificados e 100% seguros. Nesses dias, boletos, míscaros, frades e sanchas enchem as mesas das casas que se abrem aos visitantes (que foram 30 mil o ano passado), na forma de arroz de míscaros, sopas de cogumelos, cogumelos grelhados ou guisados…
NÃO TOQUE NO “COGUMELO WALT DISNEY”
Anualmente, centenas de pessoas morrem em Portugal por ingestão de cogumelos tóxicos. O responsável mais frequente dessas intoxicações chama-se Amanita phalloides, cuja toxina é a muscarina. A muscarina é mortal. “Um micrograma mata um homem adulto”, explica José Matos. O fígado dissolve-se, e só um transplante pode salvar a questão. Outro cogumelo a não ingerir é o Amanita muscaria, o tradicional cogumelo vermelho com bolinhas brancas, difundido no imaginário infantil dos contos da “Alice no País das Maravilhas” (nota mental: não tocar no “cogumelo Walt Disney”). Também há cogumelos “que com o álcool veem os seus efeitos triplicados”, continua. E para tirar a teima, há um laboratório de análises em Castelo Branco que serve de apoio.
Amanita caesarea, espécie que era servida aos Césares, no Império Romano. É o único cogumelo que pode ser comido cru
José Matos alerta ainda para uma série de perigos que ameaçam este sector em Portugal — onde, ao contrário de outros países, não há qualquer tipo de legislação nem mecanismos de proteção. “Como qualquer outra atividade, os apanhadores de cogumelos deviam ter licença. Na serra da Gardunha, todos os anos temos hordas de apanhadores franceses e espanhóis, que destroem o solo da floresta, com os micélios destes fungos. Cogumelos que em Portugal são comprados por estrangeiros ou portugueses a 1 e 2 euros o quilo, quando passam a fronteira, já vão a 10, 15 ou 20 euros o quilo, e quando chegam a França, são vendidos sempre acima dos 40 euros”, alerta. Entre a Gardunha e Trás-os-Montes, as duas principais regiões de cogumelos silvestres, “Portugal dará umas largas toneladas de cogumelos por ano, e só 10% são consumidos cá. A maioria é consumida em França, Espanha e Itália. É uma riqueza nossa que estamos a desperdiçar”, denuncia.
Marisa Azul, bióloga e investigadora na área da Micologia na Universidade de Coimbra, concorda que todos beneficiariam com a regulamentação da colheita e do cultivo dos cogumelos, que seria aliás um ótimo potenciador das economias locais. Como sucede na aldeia de Alcaide, e em certas regiões de Itália, relativamente às trufas. Relembra que “a presença destes fungos nas florestas facilita a reciclagem dos solos e dos nutrientes”. E que, “como alimento, o cogumelo é rico em proteínas, vitaminas e sais minerais, do mais natural que há”.
Mesa com algumas espécies de cogumelos silvestres em Portugal: à esquerda, comestíveis, à direita, tóxicos
Mas há muitas mais formas de consumir cogumelos do que as que imaginamos… É possível ir jantar fora e comer este fungo de entrada, prato principal e sobremesa, sem que isso seja enfadonho, assegura Luigi Pintarelli, um italiano a viver em Portugal há 20 anos, que em 2013 abriu o restaurante Santa Clara dos Cogumelos, em Lisboa. Ali, é possível iniciar a refeição com uma sopa tailandesa de cogumelos Pleurotus, degustar um risoto com zest de alecrim, e terminar com uma crème brulée de trufa e alcaçuz. Ou um gelado de cogumelos, confecionado com uma espécie que cheira a anis. Para este italiano do Veneto, apaixonado por cogumelos silvestres, ter um restaurante deste género nunca esteve nos planos. Mas a tarefa não foi difícil, já que “o cogumelo é um alimento muito versátil”. Três anos depois, confessa, bem-disposto, “é um milagre o restaurante ainda existir”. Primeiro, porque ele não tinha experiência de restauração. Depois, porque “este país é profundamente micófobo [tem medo de comer cogumelos], excetuando as zonas rurais”; e porque o restaurante não está num local de passagem (situa-se no mercado de Santa Clara, na Feira da Ladra). Contudo, e apesar de só estar aberto ao jantar, resiste. Começou com “um público curioso”, que foi passando a palavra, e mantém “um público heterogéneo, mais para o jovem, por causa da ementa ousada, mas que se alarga a pessoas diversas”. O ano inteiro, Luigi trabalha com “cogumelos de cultivo biológico” — Shiitake, Pleurotus, “cogumelos de Paris”, Portobello… No outono, época dos cogumelos silvestres — que “são poucos e imprevisíveis” —, usa boletos (porcini), chanterelles, trompetas da morte, tricolomas. Mas “o mercado interno é muito fraco”, considera. É precisamente para alterar esse facto que se está a trabalhar.
